quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O coral da igreja II

As vidas que o coral une,
vindas de longe, são nuvens
órfãs que adiaram o mundo
para ouvir seu canto fundo...

Na praça em volta, namoros;
olhares de vezo torto
requeimam-se em meio a rosas
com muito medo do amor.

Intenso o coral modula
seu jorro de vozes fundas,
e, feridas de amor nulo,
vão binárias criaturas.

O coral da igreja

Vindo da igreja o coral –
que olho da porta – é tal
como a voz, a vida e o mal:
tudo enfim se apaga igual.

Na praça ao lado, quem ama –
olhar de círio que clama –
por entre canteiros flana
e assim sua morte engana.

E quando o coral respira,
seu mar mais leve expira:
parece que a um céu se aspira
e a dor nossa se retira.

O silêncio, ao chegar,

como um hino feito de ar,
vem suave e devagar:
essa é a hora de orar.

Cirandinha

Ao Daniel e família

À ciranda dos meninos,
Daniel veio brincar:
veio cheirando a luar.

Tangeu longe o velho sino:
Daniel veio morar
nesse chão de rir, chorar.

- Vem Daniel, vem menino,
no balão do dia alto,
nossa vida vai num salto.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Borboletas transeuntes


As borboletas transando
no divã azul de maio
são duas pétalas sem ramos,
são folhas novas que caem.

Tontas do fardo da carne,
tapam com mel o pesar
de viver, e com escárnio,
vão à morte, sem voltar.

Duram vinte e quatro horas,
bêbadas de eternidade;
filtradas de luz vão embora
levadas na tenra idade.

São crianças já adultas:
recebem o voo da vida
e, nesse mesmo indulto,
as horas de despedida.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A lua no cemitério

A velha Lua pinta cruz e lápides,
aplica nomes, datas e boceja...
No mármore, bordeja com seu lápis
fátuo o teu nome, o meu ou de quem seja.

Levíssima, suprema e perfeita
desfila na calçada entre estrelas,
suspira em silêncio e cumpre a lei:
dormir em outra casa em meio a velas.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Marcel Proust e La Recherche


à Marcel Proust, vidente e sábio


Os olhos de Marcel são dois judeus,
são estrelas ciganas pela noite.
No leito insone dormem a Lua e o Eu.
Albertine sumiu, fugiu do açoite.

A rapariga em flor desfez o jugo
e como gata em cio se lambe salva.
Oculta em Paris, sem o verdugo,
emana certo odor de rosa e malva.

Proust, vidente, vê além dos muros,
com fome vê a caça na parede,
e a novela que cria nesse escuro
tem como ator a alma dele em rede.

Na caça de Albertine na memória,
no nascer e morrer de uns instantes,
refaz nesse caminho a própria história,
até enlaçar no berço a mãe amante.