segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Na minha morte

Quando chegar minha hora,
tragam-me as flores mais simples
para morrerem comigo.

Das mais belas, escolham:
cravos e jasmins e rosas
e ramos de ipê nas cores
branca, roxa e amarela;
não machuquem sua pétalas
não as murchem com o óleo
das orações e das lágrimas,
pois vou levá-las a Deus
que as esqueceu aqui
e talvez não saiba delas.

Não vertam sal sobre mim,
sobre meus olhos fechados,
nem dores tardias, nulas
para ouvidos descampados.
Se escutarem no meu sino
o sino de suas mortes,
inútil, não levo dor
nem recado de clemência.

Levarei tão-só um hálito,
suspiro póstumo, mudo,
para devolver a Ele.
Com pouco, com brisa morta,
de igreja deserta, Deus,
sopre vida em outro barro!

Por fim consagro, imolado,
o silêncio derradeiro
(moeda na boca sábia),
e meu coração de pedra
ao barco leve das nuvens.



Inelidível tristeza

Inelidível tristeza,
que sempre volta
ao soar de velhos sons:
o pio dos pardais,
o canto da lavadeira,
os metais do talheres,
um teco-teco voando -
retalhos na memória
e nas nuvens.

(Estaria eu presente
num mundo ausente;
ou então ausente
num mundo presente?)

Amicíssima tristeza,
sempre pronta e fiel.
Estranha voz residente,
que vem quando quer,
que fala em silêncio,
que senda em mim perdida
conduz até à tua fonte?

Na U.T.I.

Estou na U.T.I.
Estamos todos na U.T.I.

Falta uma página de sol,
uma gota de sangue.
Falta uma ave para o sul
ou para o norte; faltam erros
médicos, acertos divinos.

Falta ser paciente,
diz o médico.
Joguei no descartável:
deus, diabo, família, meu cão, buda.
Fiquei no corredor da morte nu
e de fraldas.

Mais tarde, recuperado, peguei de volta
os descartáveis: Deus,
Diabo, minha Família, meu Cão, Buda.

A todos que me salvaram,
pela lei da selva serei escravo,
para sempre.



xxxx



Empurrado na cadeira para o banho,
atravessou meu quarto:
- Bom-dia.
- Bom-dia.
Pergunto:
- Como está?
Responde:
- Ótimo. Graças ao CLEMENTE!



xxx

Euclides, o enfermeiro

Depois dos cuidados comigo,
lanço a pergunta:
Você tem filhos?
A resposta:
QuatroS.


xxxx



Querem voltar ao Nordeste.
Ambos, o enfermeiro e a enfermeira.
"Com este curso de enfermagem que fizemos
no Rio de Janeiro, vamos enricar. Está assim, assim,
de família rica precisando de enfermeiro.
Vamos enricar.



xxx



Dão-me um banho o casal
no próprio leito. O último orgulho,
as últimas vergonhas
vão-se ao ralo. O mais necessário banho
de minha vida. O mais difícil.
Estarei puro para o resto
da jornada; melhor, certamente haverá
um último...



xxx



Sentenciado a 72 horas de rede Globo,
hoje sei o que é um corredor da morte.


xxx



       À noite, o enfermeiro Dr. Hide. Notou a falta da papeleta com meu nome na parede. Voltou com a papeleta. Notou que eu bebia um remédio. Disse que os remédios só poderiam ser dados se prescritos pelo Hospital; no caso, seriam dados por ele, de plantão. Hesitei um pouco dizendo que o médico autorizara. Respondeu que não pode. Ponderei que então não tomaria, já que era assim. Ficou pensativo, disse-me que se o médico autorizara...Mas insisti que então não o tomaria. Ficou em silêncio, pensou e saindo me disse:
- Acho que é melhor você tomar, se o médico autorizou... Você é quem sabe. À noite, volto, para conferir.
-  A que horas você volta?
- Às quatro, de madrugada, tiro a pressão, vejo se você está bem, confirmo se tomou os medicamentos.
       Fiquei de plantão, sem dormir, esperando-o...Não dormi um segundo. Às quatro em ponto o Dr Hide volta. Observei-lhe a pontualidade. Disse-me: 
-  Aqui a gente tem que ser pontual.
       Contou-me debruçado sobre meu corpo, quatro e quinze da madrugada,  o caso do biomédico que recebeu dois tiros e estava tetraplégico e que fora ele que o atendera, estava aqui de plantão.
- Merecem a pena de morte, não? - finalizou.  Logo depois, saiu. Perguntei:
- Hoje você ainda volta?
- Não, vem outro no turno das sete.
- Obrigado. - disse-lhe.
- De nada.
- Boa recuperação.
- Obrigado.
        Saiu. Que hospital quieto...Adormeci!



                                                             

Haikai Ki não sei

Não sei rezar ave-marias,
só sei jogar água nas rosas.