Hoje é dia de Finados. Alguém diria: “Não são de finados todos os dias?” Sim, mas hoje é especial. Hoje o dobre invisível convocou a cidade inteira. E atendemos. Ao portão, os vendedores de flores pregoam em silêncio os buquês da ocasião, margaridas e crisântemos, que serão queimados nas campas no sol de novembro. Na abóbada do portão: “Cemitério da Saudade”. Com as flores ceifadas por uma moeda, adentramos nosso além.
Hoje também, conclamadas pelo mesmo dobre, as almas da memória retornam ao cemitério para o encontro anual, e urge não decepcionar os presumidos quinze mil visitantes. Já as demais almas, as esquecidas, como estão no pó derradeiro, última estância, definitivamente mortas, não virão. O eterno meio-dia do fim da primavera castiga-nos severamente e, sem lágrimas, pisamos o chão longamente galvanizado pelo sal. Parece mais quente o sol no cemitério a cada ano de vida. Pelos corredores dessa cidade vejo as igrejinhas: estão epigrafadas com nomes subitamente lembrados; nas lousas, entre as datas sagradas, o hífen, o interstício de um segundo de vida.
Ziguezagueando pelo cemitério, num vozerio abafado, vamos procurando os nomes como se fossem placas de rua. Os nomes em caligrafia especial marcam o território do além, as propriedades herdadas e orgulhosamente ostentadas. Ocorre-me, graças ao leve meneio duma brisa que passa, que nossos mortos estão felizes.
Hoje é dia de finados, mais um, e assim que o sol se puser e as pessoas lentamente esculpirem as silhuetas no horizonte, morderemos com avidez o nosso bocado de vida. E bem lá no alto, no túmulo azul, a lua insaciável fará mais uma vez silenciosa ronda pelo cemitério da saudade, tangendo oculta melodia que chamará de volta as almas (as lembradas) para o céu, dispensadas que foram por ora.
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