quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Martelo na casca do dia

Sempre o martelo na casca do dia,
a luz contando as talas da janela.
São sempre os sinais sem alegria,
primeiros minutos, soprada a vela.

Rosangela espreme e lava as horas,
mas as roupas jamais se limparão.
Sua cantarola é feia (o cão adora)
e a água da manhã ela joga ao chão.

Sempre na caminhada uma notícia:
morreu jovem sadio de repente!
Agiu Ela outra vez com imperícia,
ninguém  há que adivinha o doente.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Deus me deu um novo amor

Deus me deu um novo amor
no velho amor, finda a cota.
Chamado outra vez Amor, 
do veio antigo ele brota.

Alcançando a luz seu cerne
ei-lo bem mais forte agora.
Ruída a velha epiderme
outra nascendo revigora.

Por si se erguendo, esse Amor
veio à margem são e salvo.
Veio do fundo e sem dor,
fez de mim de novo o alvo.

Provando a morte em vida,
verde Amor resiliente,
esse Amor de duas vidas
viverá além da gente.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Perguntas para ela não responder

Eu sem você, sem nós dois,
o que seria de mim?
Com quem compartilharia
a chuva, e a calma depois?

Ninguém na insônia, meu céu,
se eu acordar bem cedinho;
diante do espelho e de mim,
só o meu rosto sem véu.

No poço do tempo, a nudez,
e um temido silêncio.
Na urdidura do tempo
o vazio em prenhez.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A fome dos pães

De crisântemo, pintada de sol
e girassol, a manhã
desova seus pães de trigo.

No balcão da padaria
os pães nos desejam,
nos comem. A cada
manhã, eivados
de fome e paciência
vão nos deglutindo,

os pães eternos de cada dia.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Biografia



Olho o rio que leva as almas,
rio sem rumor, pele prata,
na noite de céu gelado.
Olho o ir e o vir de vidas
murmurantes sem aviso
das eclusas da memória.
Nesse porto em crepúsculo,
despertos num dia-a-dia,
mercadejando sua dor,
vultos saem do cós do tempo.
Lá está minha mãe: sua vida
é navegar pelo sal.
Alinhava um pano branco,
abotoando-o de lágrimas.
Bem perto (mas escondido)
vejo meu pai como ator
interpretando o papel
de amor, traição e destino.
Está vivo em meio ao Letes,
de onde nunca vai voltar.
Põe-se a cuidar do caçula.
Amassa espinhas de peixe
com as mãos sujas de graxa,
para salvar o menino
de armadilhas da fome
(de dor fixa na garganta).
Seu trabalho na oficina,
é ajudar o menino
e seu martelo de plástico.
Forja em ferro frio o ser,
busca blindagem de aço.
Sempre tem as mãos de graxa
de consertar rodas tortas
de carroças que quebraram.
Minha mãe vive a coser.
Cose sua carne com agulhas,
remenda trapos de vida
e diz que dói ser mulher.
Com essa dor costurada
vela o menino que brinca
com seus brinquedos quebrados:
derrama sobre os encaixes
cera quente de ódio e amor,
que não solda nem desata.
Vejo claramente o sonho:
um barco velho flanando
pelo mar que é cemitério.
Capitão de um barco preso
à margem, vivo buscando
um lugar para o sol e a lua.

A inauguração da maquete

Maquete de cera em alto-relevo
fusão de silêncio e matéria-prima:
mundo atado à dor da madrugada.

Tão-somente olhada por estrelas
a maquete aguarda a alvorada:
Sr. Fiori busca pão sem se mover;
cães alvissareiros são de pedra;
pardais pelo beiral, pios empalhados;
senhoras varrem pó de estrelas, mudas;
verdureiro de alfaces de sereno,
seu pregão congelado está por um átimo.

Eis que a língua de luz toca-os como sopro
e a maquete revive excelente.
O carrosel ativa seu moinho
e lázaro revive sua voz.
Chovem os ruídos da manhã
repicando na veneziana.
São as flores e os pombos das mágicas.
Ontem e hoje a idosa vestida de preto
abraçada à oração segue ao portal.
Os pássaros reapareceram à janela.

A cidade aberta pelo dia
descosturou em ruídos sua tenda.
Vão-se todos ordenados pela hora.
Perdem-se aqueles no voo distante.
Tudo parece viver sem dizer.

Para onde seguirá a vistosa tenda
reinaugurada ao amanhecer?

2 A fanfarra do TG

A fanfarra do Tiro de Guerra, recidiva, treina o amor à Pátria. Também recidivos, na fileira mais alta do dia, o ipê amarelo, o rosa, o branco, no firme azul. No chão o mesmo pó de deserto nos coturnos, chão de vida e morte dos jovens legionários. Sempre o setembro seco bicado pelos sabiás pocas, cantando a chuva que não vem.
Outrora os dezoitos anos me convocaram, me alistei. Das guerras da idade, a única fardada. Outrora num pelotão avançado servi. Havia muitas guerras e nenhuma amada esperando.
De olhos fechados, novamente ouço o som militar galgando as estrelas, som que, esmaecendo, nunca some. Onde estão os meus correligionários, os aprendizes de homem? Com uns, troco bons-dias, boas-noites, e com os que desertaram, troco sussuros de silêncio. Obedeceram a ordem última e se esconderam nos campos santos, os bravos, inolvidáveis. Onde estará o sargento? Ouviu também ele a voz de descansar?
O mesmo novo pelotão toca o rataplã furioso, o cortejo de coturnos emparelhados vai num crescendo tomar o pico da colina. Chegaram os novos manés, os antônios, os alves, os machados, os bavieiras, os dianis, todos com a numeração ao peito.
Madrugando suas vidas, praticam a ordem unida, sinuosa e acelerada. Seguem, desarmoniosamente alvos da guerra não declarada. O sargento lá do panteão continua comandando as ordens de ir, seguir, parar e descansar.
O caudal verde azeitona de jovens flui sem nenhuma prática da guerra. O rataplã treme o quarto e a cama. Os coturnos solam. Os toques de silêncio. O sol da alvorada viçoso avança, incontinenti, nos olhos.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Fanfarra do TG

A fanfarra do tiro de guerra,
recidiva, esmera o rataplã.

Fiz parte de uma, onde está?
Listados para a morte
ainda somos alguns.
Os demais, abduzidos,
tomados pelo inimigo
oculto. Por arma branca
silenciosa? Recolhidos
em macas? Agora podem
dormir nas guaritas.

Os novos donos do rataplã,
madrugados para a guerra,
praticam a ordem unida.
Os novos praças: os alves
os antônios os bavieiras
os dianis os manés os machados
numerados bem ao peito
marcham para a bala.

A fanfarra e o rataplan
desata som e fúria
com o martelo da morte
nos coturnos emparelhados.
Quem troa a ordem de seguir
na mesma ordem inclui
o grito de parar e descansar.

Obedientes, bem unidos,
desarmoniosamente alvos
da guerra não declarada,
flui o rio verde de jovens,
o sol chapiscando nos olhos.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Na fímbria da manhã


Piso a fímbria da manhã.
Logo à porta passa um homem coxo.
Leva consigo uma gaiola. Vazia.
Anunciada prisão filtrada de luz.
Se ele avança, a gaiola recua;
se avança esta, ele recua.
Apenas o verniz do sol sobre
nós, transfigurados e transparentes.
Tudo silêncio, tudo calmo.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Ao poeta sem leitor

Verso ao poeta sem leitor.

Verso de autoajuda,

de consolo pela

incomunicada poesia

(como tantas outras).

Verso jogado na gaveta

do silêncio cósmico.

Verso que cometeu com

brando sorriso nunca visto

(verso nunca lido).

Verso, soldado que morreu

em desolado campo de batalha

(como tantos outros).

Soldado morto com

recôndito retrato

de amada.

Salve o belo verso

do inominado poeta

(inconsolável).