sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Não a eternidade, mais dias

 
Não quero a eternidade olhar do cais,
o Éden branco, nuvens e clarões,
a voz grave de Deus sobre meus ais,
nem a paz das ovelhas com os leões.

Eu quero a eternidade dos quintais,
a minha braça doce de limão,
rolinhas e luar, pios de pardais,
mas ser eterno eu não quero não.   

Com esse saldo rico, reinarei
sobre seixos e areias sem ter planos.
Do tapete do chão serei o rei,
e olharei somente as dunas planas.

De volta, então chegado das estrelas
onde lutei fiel sem ter albergue,
estenderei na mesa armas de ceras
e no chão a bandeira enfim entregue.

Outros mundos e deuses me beberam
o corpo e me esfolaram em altar.
Vou descobrir um canto entre heras,
que nem sequer o tempo vai roubar.

Bem farto, gastarei as horas todas,
bem pródigo de ócio e nenhum ouro.
Vou desvelar o sol em novas podas,
e as folhas cobrirão o meu repouso.

Na límpida manhã


Abro a porta e na fímbria da manhã,
a falsear o passo, um homem coxo.
Traz preso na gaiola um canário
(duas vidas balançando a dor cativa).
Claudicante ele avança a passo torto,
sobre manchas de sol buscam chegar,
folhas caíndo cobrem-lhes as pegadas.
Manhã  transfigurada e transparente,
os seres se afastando me algemam.

Maio altíssimo


Maio em sua face única:
um céu no mar, mar no céu.

Mesmíssimo revezar
de si mesmo, renascendo.

Plantação de rosa em volta
do orbe, estrelas diurnas.

Uma sebe toda rósea
no manto azul aplicadas.

Aparece uma senhora
no topo de maio altíssimo.

De suas mãos para beber
dentre os lábios o sereno.

Continente orgulhoso
tu és o dia entre os dias.

Maio plantado há mil anos,
colheitas de anil e noivas.

Outono de sono claro
vicejando orvalho e ipês.

Maio que estais lá no céu
bendito o sol que o ilumina.

Bendito deserto mater
acontecimento azul.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Finados

Hoje é dia de Finados. Alguém diria: “Não são de finados todos os dias?” Sim, mas hoje é especial. Hoje o dobre invisível convocou a cidade inteira. E atendemos. Ao portão, os vendedores de flores pregoam em silêncio os buquês da ocasião, margaridas e crisântemos, que serão queimados nas campas no sol de novembro. Na abóbada do portão: “Cemitério da Saudade”. Com as flores ceifadas por uma moeda, adentramos nosso além.
Hoje também, conclamadas pelo mesmo dobre, as almas da memória retornam ao cemitério para o encontro anual, e urge não decepcionar os presumidos quinze mil visitantes. Já as demais almas, as esquecidas, como estão no pó derradeiro, última estância, definitivamente mortas, não virão.  O eterno meio-dia do fim da primavera castiga-nos severamente e, sem lágrimas, pisamos o chão longamente galvanizado pelo sal. Parece mais quente o sol no cemitério a cada ano de vida. Pelos corredores dessa cidade vejo as igrejinhas: estão epigrafadas com nomes subitamente lembrados; nas lousas, entre as datas sagradas, o hífen, o interstício de um segundo de vida.
Ziguezagueando pelo cemitério, num vozerio abafado, vamos procurando os nomes como se fossem placas de rua. Os nomes em caligrafia especial marcam o território do além, as propriedades herdadas e orgulhosamente ostentadas. Ocorre-me, graças ao leve meneio duma brisa que passa, que nossos mortos estão felizes.
Hoje é dia de finados, mais um, e assim que o sol se puser e as pessoas lentamente esculpirem as silhuetas no horizonte, morderemos com avidez o nosso bocado de vida. E bem lá no alto, no túmulo azul, a lua insaciável fará mais uma vez silenciosa ronda pelo cemitério da saudade, tangendo oculta melodia que chamará de volta as almas (as lembradas) para o céu, dispensadas  que foram por ora.